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03 setembro 2010

Poemas de David Mourão-Ferreira




E por vezes as noites duram meses

E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos

nunca mais são os mesmos E por vezes
encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes
ao tomarmos o gosto aos oceanos

só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos
E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos

       David Mourão Ferreira





 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Labirinto ou não foi nada
 
 

Talvez houvesse uma flor
aberta na tua mão.
Podia ter sido amor,
e foi apenas traição.


É tão negro o labirinto
que vai dar à tua rua…
Ai de mim, que nem pressinto
a cor dos ombros da Lua!


Talvez houvesse a passagem
de uma estrela no teu rosto.
Era quase uma viagem:
foi apenas um desgosto.


É tão negro o labirinto
que vai dar à tua rua…
Só o fantasma do instinto
na cinza do céu flutua.

Tens agora a mão fechada;
no rosto, nenhum fulgor.
Não foi nada, não foi nada:
podia ter sido amor.

                 David Mourão-Ferreira










É uma escada em caracol
E que não tem corrimão.
Vai a caminho do Sol
Mas nunca passa do chão.


Os degraus, quanto mais altos,
Mais estragados estão,
Nem sustos nem sobressaltos
servem sequer de lição.


Quem tem medo não a sobe
Quem tem sonhos também não.
Há quem chegue a deitar fora
O lastro do coração.


Sobe-se numa corrida.
Corre-se p'rigos em vão.
Adivinhaste: é a vida
A escada sem corrimão.

                David Mourão Ferreira



Escada sem corrimão







Teia


Voto



Que o fosso da memória se transponha,
que seja a solidão atravessada!
Da cálida crisálida renasça
de novo o corpo o corpo todo!
Venham as roucas sílabas da posse
no búzio dos ouvidos enroladas!
sobre a teia das veias impalpáveis,
reconstrua-se a cúpula dos olhos!
Que tudo, tudo, súbito se emprenhe
da realidade que a lembrança apenas
em folha de álbum, ressequida, guarda!
Que eu vá de novo decorar-te a seiva,
como um poema líquido que seja
urgente recitar na eternidade.



In Tempestade de Verão

Búzio





 








Soneto do amor difícil


 


A praia abandonada recomeça
logo que o mar se vai, a desejá-lo:
é como o nosso amor, somente embalo
enquanto não é mais que uma promessa...



Mas se na praia a onda se espedaça,
há logo nostalgia duma flor
que ali devia estar para compor
a vaga em seu rumor de fim de raça.


Bruscos e doloridos, refulgimos
no silêncio de morte que nos tolhe,
como entre o mar e a praia um longo molhe
de súbito surgido à flor dos limos.


E deste amor difícil só nasceu
desencanto na curva do teu céu.
                 
                      David Mourão-Ferreira






 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 





 
 
 

Angel rendering-O. Sinclair
 
Tentei fugir da mancha mais escura

que existe no teu corpo, e desisti.
Era pior que a morte o que antevi:
era a dor de ficar sem sepultura.




Bebi entre os teus flancos a loucura
de não poder viver longe de ti:
és a sombra da casa onde nasci,
és a noite que à noite me procura.


Só por dentro de ti há corredores
e em quartos interiores o cheiro a fruta
que veste de frescura a escuridão. . .



Só por dentro de ti rebentam flores.
Só por dentro de ti a noite escuta
o que sem voz me sai do coração.


 
 
Demuth








Litania para este Natal



Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
num sótão num porão numa cave inundada
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
dentro de um foguetão reduzido a sucata
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
numa casa de Hanói ontem bombardeada


Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
num presépio de lama e de sangue e de cisco
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
para ter amanhã a suspeita que existe
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
tem no ano dois mil a idade de Cristo


Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
vê-lo-emos depois de chicote no templo
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
e anda já um terror no látego do vento
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
para nos vir pedir contas do nosso tempo




Presépio, M. Angelo


Nem o Tempo tem tempo
para sondar as trevas

deste rio correndo
entre a pele e a pele


Nem o Tempo tem tempo
nem as trevas dão tréguas


Não descubro o segredo
que o teu corpo segrega


No Veio do Cristal, David Mourão Ferreira